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Adivinhe quem é a belle feme, o cafajeste e a vítima? |
Recentemente foi semana santa e, como todo o bom feriado prolongado, também foi uma ótima oportunidade para atualizar leituras e cinebiografias. Confesso que, embora minha tentativa de emfim conhecer a nouvelle vague tenha mais uma vez soçobrado frente à minha habitual preguiça, pude ver (em uma das raras tréguas que tive na luta contra o ócio absoluto) um ótimo filme noir chamado Where the Sidewalk Ends, ou como foi chamado no Brasil, Passos na Noite. O filme, de direção de Otto Preminger, começa de modo corriqueiro para o gênero, uma belle feme, seu companheiro reconhecidamente cafajeste(sério, desde a primeira cena era claro que ele não prestava), e uma vítima endinheirada. Não podendo faltar, claro, o crime, qual seja, o assassinato da referida vitima.
Até esse ponto, o filme seguiu o padrão de todos os filmes do gênero, não havendo nenhuma surpresa. Até a cena na delegacia, onde os detetives discutiam sobre o crime citado, seguia também, sem nenhum problema o velho livrinho de esteriótipos noir, tendo o policial brutal, mas seguidor da lei e da ordem, o policial amigo dele e por isso apagado no filme, e o policial corrupto que tem uma rápida ascensão na carreira. No entanto, é a partir desse ponto que as coisas começam a ficar interessantes...
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Ops! |
Logo, o policial brutamontes, em uma ótima atuação de Dana Andrews, vai até o referido personagem cafajeste para tentar interrogá-lo sobre o ocorrido. No entanto, seus heterodoxos métodos de interrogatório levam à morte acidental do interrogado (sério, foi acidental mesmo). Tendo em vista que seu comportamento violento habitual estava prestes a levá-lo ao rebaixamento e talvez até ao afastamento da sua amada corporação, ele habilmente esconde o corpo e as pistas do crime.
Embora inicialmente a ideia tenha dado certo, Dixon logo começa a entrar em um forte estado de depressão e paranoia. Ele que já era bastante truculento até mesmo com os maiores bandidos da cidade, chega às raias da temeridade com os mesmos, ameaçando e até batendo em um "chefão" da máfia dentro do próprio território desse. Uma cena muito interessante, é quando ele e o parceiro, depois de um plantão, dormem por algumas horas na delegacia. No entanto, apenas seu parceiro dorme, porque o próprio Dixon não consegue pregar os olhos, em tal estado de nervosismo em que se encontrava.
No decorrer da história, um inocente acaba sendo dado como culpado pelo crime (convenientemente o pai da belle feme), sendo que o estado emocional do detetive se degrada ainda mais com o fato. É desnecessário mencionar, que o protagonista, Dixon, se envolve com a belle feme, interpretada por Gene Tierney, que o vê como um anjo, ou coisa do gênero, já que de todos os policiais envolvidos no caso, ele é o único certo da inocência de seu pai.
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Consegue-se ver algo além de culpa e medo?
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Não pretendo mais me estender sobre o enredo do filme, porque realmente gostaria que qualquer leitor incauto que se aventurasse por essa página realmente visse o filme. Mas confesso, que todo o filme me permitiu fazer uma curiosa ponte com uma outra obra artística de tema parecido, embora essa seja literária. Falo de Crime e Castigo, escrito por Dostoiévisk, em 1856. Nele, um jovem estudante mata uma velha sovina e dona de um penhor, porque considerava estar fazendo um bem à humanidade. Entretanto, tal como o detetive, à culpa o corroí pouco a pouco, fazendo com que, em dado momento ele termine por se entregar.
Curiosa a relação nas duas obras citadas, que o sentimento de culpa possui nos referidos personagens, digo, mais do que a relação, a consequência dessa emoção os leva a uma situação onde a própria existência se torna impossível, dada a flagrante quebra de uma norma e necessidade, portanto, de uma punição. Embora no filme tenha ficado claro, que o passado de Dixon o tenha ajudado a adquirir um certo grau de neurose quanto ao cumprimento da lei (tendo em vista que seu pai era um criminoso, ele se tornou policial em um mecanismo compensatório), apenas alguém que passou toda a sua existência sozinho em uma caverna, ou talvez um alien, poderiam negar que a culpa, ou o sentimento de culpa, é algo de presença recorrente em nossas vidas e em nossas ações. Todos buscamos, ao final, a redenção por algo feito ou ao menos imaginado (freud explica). Essas obras, mais do que servirem como um brado de almas atormentadas por seus pecados, nos permitem ver como a culpa atua em nossas vidas e nossas ações. Perceber a existência desse sentimento, e de seu efeito sobre nós, é fundamental o crescimento individual de qualquer um, para que, com alguma sorte, possamos ou finalmente alcançarmos a tão sonhada redenção, ou simplesmente apreendermos a viver sem ela.
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