Em meio à minha ociosidade semipermanente, vim a ter contato recentemente com uma HQ extremamente interessante (particularmente considerando o período pelo qual passamos atualmente) chamada Transmetropolitan, uma publicação da Vertigo, escrita por Warren Ellis e desenhada por diversos nomes.
Nela, em um futuro distópico e indeterminado o seu protagonista, Spider Jerusalém, um repórter sensacionalista que poderia ser descrito(usando fortes eufemismos), apenas como absolutamente cínico, chapado e, acima de tudo, impensavelmente filho da puta, se vê após um longo e insano período de auto-exílio, obrigado à voltar ao trabalho.
No entanto, voltar ao trabalho não significa para ele apenas voltar ao jornalismo, mas também significa voltar à Cidade, ambiente onde se passa toda a trama e que simboliza os próprios antagonismos internos do personagem. E não se entenda cidade por seu conceito abstrato, geral, aqui a cidade é a Cidade (com "c" maiúsculo), um gigantesco e colossal (e diga-se de passagem surreal) aglomerado de pessoas, classes, culturas e etnias, uma verdadeira babilônia bíblica. E é a esse caldeirão cultural que o personagem devota seu mais sincero amor e ódio.
"Lugar maldito e terrível. Alguns dias, é como se algum bastardo pregasse uma passagem de ônibus direto para a porra do inferno bem na minha testa. Pra cada louco "tudo-depende", cada "primeiro-beijo-do-resto-de-nossas-vidas" em cada esquina, para cada bela mulher parando de sentir o sol na própria face e cada criança dançando na chuva limpa, há um moleque vivendo na própria merda numa caçamba de lixo qualquer, enquanto papaizinho dá a bunda por dinheiro, há tanques invadindo casas desabitadas somente para poder impedir sem-tetos de defecar lá... Foi-se a época que esse lugar não fazia sentido e eu podia conviver com isso. Ele mudou demais, ou eu mudei?
Há tudo de melhor nessa passagem, e o mais puro mal também. E como sempre, eu vou para o fundo do poço com você." (trecho do primeiro volume)
É vasculhando nas ruas, se esgueirando pelos becos e contemplando o sublime e o ridículo do cotidiano, que o personagem desenvolve o seu "jornalismo", que mais do que a compreensão contemporânea que temos sobre o tema, uma lente imparcial e fria sobre a realidade, é a busca pelo real, pela verdade, mesmo que essa seja demasiada dura ou asquerosa demais para sequer ser pensada.
É nesse ponto que se contempla o caráter anarquista do personagem, que mesmo em uma sociedade corrupta e extremamente perversa, que reconhecendo a si próprio como um ser perverso e depravado, busca com todas as suas forças alcançar seu ideal, mostrar a todos a verdade, a dura verdade que todos ignoram, ou fingem ignorar, mesmo que para isso ele tenha de, em suas próprias palavras, foder com todo mundo. Sugestivo é o nome da coluna que ele semanalmente escreve para um jornal, I hate it here, que sintetiza maravilhosamente a atuação profissional e até a personalidade do Spider.
No entanto, a HQ não é boa apenas pelo seu enredo ou o seu traço, ou até mesmo o desenvolvimento de seus personagens, o que é realmente interessante contemplar na dita publicação, é sua atualidade quanto ao nosso contexto social e político.
"Sigam-me com o sorriso adequado. A cobertura adequada. A imagem certa...
Sigam qualquer um que diga "vou cuidar de você, tomarei as grandes decisões de suas mãos para que vocês voltem a cagar uns nos outros e se foderem em completa e abençoada ignorância...""
Por mais futurista que a sociedade retratada na citada HQ seja, ela desenvolve por toda a sua trama, duas questões que são fundamentais para o entendimento de nosso contexto sociopolítico contemporâneo: a comercialização da política e a idiotização das massas. Dois fenômenos que, embora inicialmente diferentes, são consequência e efeito um do outro.
Sem dar grandes spoilers sobre a história, mas apenas dando substrato suficiente para entender os conceitos que acabo de mencionar. A linha principal de enredo mostra a atuação do protagonista em uma eleição presidencial. Nela, concorrem dois políticos eminentemente corruptos, mas absolutamente "votáveis". Usando os a dados pelo próprio protagonista aos citados presidenciáveis, concorrem no pálio eleitoral a "Besta" e o "Homem Sorridente".
Curiosamente, as campanhas eleitorais de ambos não se apoiam em suas plataformas políticas e propostas de governo. Aquilo que é discutido por toda a trama é qual dos dois é mais "votável", digo, qual deles é o melhor produto para que o consumidor/eleitor vote/compre. Se levarmos em conta nossas campanhas eleitorais recentes, e não digo isso só no âmbito do Brasil mas também de todo o mundo, veremos que tal situação não é mais um "futurismo", mas é, na verdade, algo bem próximo de nossa realidade. Atualmente, não votamos mais em um candidato por sua plataforma eleitoral, ou sequer pela ideologia de seu partido. Votamos sim, naquele candidato que parece mais correto, mais esteticamente adequado(embora em um sentido político), ou melhor, votamos na melhor embalagem.
Mais interessante ainda é termos em vista que tal simplificação do discurso político, que partiu de ideais como: "qual é o melhor conjunto de ideais?" para "qual é o melhor político?", parte sempre de uma premissa de idiotização das massas. Acredita-se que a unica forma de se passar uma mensagem para uma pluralidade indeterminada de pessoas, é a simplificação do discurso às raias da infantilidade. Não que eu esteja sugerindo, um retorno ao velho discurso político anterior à Segunda Guerra Mundial, quando os centros de decisão política costumavam ficar apenas nas mãos de parcelas mais intelectualizadas da população, e o discurso político era profundo mas hermético, pois isso não funcionaria em um universo político tão dinâmico e plural como o contemporâneo. No entanto, não creio que a redução da política aos próprios políticos seja algo viável ou sequer saudável. No fim das contas, assim como na HQ, acabaremos sempre diante de dois produtos compráveis, mas igualmente e essencialmente ruins.
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