em que tudo está contido,
de onde o mundo será julgado.
(Dies Irae - Trecho)
Na mitologia grega, acreditava-se que um dos rios que banhavam os Campos Elísios(análogo ao paraíso cristão), seria o Rio Lete, que garantiria aos habitantes do Hades o esquecimento, algo obrigatório no pós-vida grego. Curioso notar, que algumas correntes teológicas do cristianismo adotam a mesma ideia, digo, creem na necessidade do esquecimento para a existência do paraíso. Mais ainda, essas correntes acreditam que esse é o único modo de não se transformar a vida eterna em uma espécie, particularmente cruel, de danação. No entanto, partindo do pressuposto que são nossas lembranças e experiências que forjam nossa personalidade, nosso eu, o esquecimento necessário à eternidade acabaria sendo, ao final das contas, apenas uma modalidade ainda mais definitiva e eficaz de morte. Em outras palavras, o esquecimento é a própria ideia da morte, o fim do espírito, o apagamento do eu. Sendo que, em tempos tão narcísicos como o nosso, vivemos em uma constante tentativa de escapar ao inexorável esquecimento, às trevas fundamentais. Compartilhamos, com alguma regularidade variável, nossas fotos e pensamentos nas redes sociais, com o fim de que esses pequenos retalhos de nossas vidas sejam registros de nossas existências, provas vivas da vitória do eu, do espírito, em face do esquecimento, do tempo, da degradação. Sim, almejamos à antiga danação, ao inferno da memória, à dor eterna do ato de lembrar. Como disse Milton em seu poema, é melhor reinar no inferno que servir no paraíso.
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Convenhamos, |
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a imortalidade moderna possui uma falha fatal... |
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depende que o outro realmente se importe conosco. |
No entanto, por mais que queiramos, ainda não conseguimos nenhum meio de vitória final contra o esquecimento. Digo, as redes sociais, o maior recurso de afirmação de nossa singularidade, possuem, por seu próprio caráter volúvel, uma fugacidade maior ainda do que a dos pobres suportes de carne que sustentam nossas consciências. Ainda não vencemos a morte. Não conseguimos construir mausoléus e pirâmides, lembretes e marcos de nossa chegada e partida, que realmente, tanto resistam ao tempo, quanto possam demarcar definitivamente nossa existência no universo. Entretanto, o filme Violação de Privacidade ou, em seu nome original, The Final Cut, produzido em 2004 e dirigido por Omar Naim, nos possibilita, talvez, um vislumbre do nosso próximo passo no esforço de negação da morte, em nosso rumo à eternidade do lembrar.
O filme parte da premissa de que, em um futuro bastante próximo, se desenvolveria uma tecnologia que possibilitaria a inserção, mesmo antes do nascimento, de uma minúscula câmera nos nossos centros nervosos. Esse aparato, gravaria cada imagem e som captados pelo seu portador, até o fim de sua existência, quando ele seria retirado, e a gravação seria editada em forma de um filme que resumiria a vida do sujeito. Esse, seria uma espécie de ultimo tributo à existência do indivíduo, ou melhor, seria o obituário por excelência, a mais perfeita e completa homenagem que se poderia fazer ao morto. Embora inicialmente mórbida, a ideia que centra todo o enredo, não está muito distante do que tentamos fazer diariamente com as redes sociais, ao espalhar, pouco a pouco, nossas idiossincrasias e pequenos pecados pela internet. No fim, todos somos alquimistas que procuram o elemento que nos dará, finalmente, a tão sonhada imortalidade. No entanto, a imortalidade tem um preço, um alto preço, que é o julgamento de nossos atos por um terceiro. Quer seja Deus, quer sejam nossos amigos na timeline, ou, como no filme, o editor da póstuma gravação, alguém assistirá e traçará julgamentos sobre nossos pecados mais íntimos.
E é esse papel de uma divindade julgadora, de uma multidão faminta, ou de um simples observador, que Robbin Willians interpreta no citado filme. Ele é o outro, ele é a balança divina que, ao contrário de julgar nossos pecados, os edita e corta, para o público em geral e em particular nossos amigos mais chegados, aquelas pequenas memórias que nos envergonham, ou que, à luz do dia, parecem sombrias demais para existirem. Entre Deus e o Facebook, Robin Willians se coloca em um meio termo. Sendo ao mesmo tempo deus, e ao mesmo tempo homem. Confesso que gosto, particularmente, de sua atuação nesse filme que, ao contrário de todas as outras obras que já assisti dele, é praticamente destituído da comédia que sempre lhe foi comum em seus papeis. Sendo que agora, na ausência do ator, assisti-lo se torna quase obrigatório, afim de podermos, de alguma forma, ao menos conhecer um lado do ator com o qual tivemos pouco ou nenhum contato.
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