sábado, 30 de agosto de 2014

DICA CINEMATOGRÁFICA: The Sword of Doom - Velhos Heróis, Novos Vilões e a Nostalgia de Sempre



"Parecem-se com aquele que fez arder um fogo; mas, quando este iluminou tudo que o rodeava, Allah extinguiu-lhes a luz, deixando-os sem ver, nas trevas.
Corão. 2:17

"(...)E o tubarão, que tem lágrimas
E elas correm pela face
Mas o tubarão vive na água
Então, as lágrimas não são vistas
(...)"

Confesso que décadas atrás, quando eu ainda era um pequeno e excêntrico rato de biblioteca( não que eu tenha mudado muito, particularmente quanto ao tamanho), eu tinha uma especial predileção por romances de capa e espada e novelas de cavalaria. Obras como Ivanhoé, El Cid, O Corsário Negro, O Leão de Damasco, Capitão Tormenta e muitas outras mais; povoaram os sonhos de meus primeiros anos, e foram fundamentais para construir o quixotesco caráter que apresento na vida adulta. Sendo que, um dos traços que mais me marcou em todos aqueles livros, foi sempre o alto grau de integridade moral de seus heróis e protagonistas. Claro que não estou dizendo que eles fossem moralistas, sequer estou falando que gostei do sistema moral de um ou outro personagem. Não, o que me impressionou naquela época, foi mais do que a ideia de alguém viver pelos seus ideais, mas o fato de também poderem morrer pelos mesmos. Sei que isso parece bastante ingênuo, mas em tempos tão cinzentos como os nossos, uma boa história, mesmo que tola, pode acalentar até o mais cínico dos corações. 



Hoje, mesmo velho e um tanto amargo, ainda possuo uma leve paixão pela cavalaria andante e pelos heróis vagabundos, sendo que, de tempos em tempos, entro em contato com um livro ou filme que apresente uma personagem do gênero. Foi nesse espírito, que me deparei com Sword of Doom, ou em seu título original, Dai-Bosatsu Togê, um filme japonês de temática samurai, dirigido por Kihachi Okamoto, em 1966. No entanto, ao invés de encontrar meu ideal de herói da juventude, tive, ao ver um filme, uma curiosa surpresa, pois o mesmo se propõe não a mostrar a saga de um herói com um rígido código de conduta, mas a de um vilão com qualquer traço moral ausente. Não, não estou dizendo que Tsukue, o protagonista, seja um tipo de anti-herói mais sombrio ou coisa que valha. Muito pelo contrário, a todo o tempo ele se mostra sádico e cruel, sentido-se por toda a trama, um esforço contínuo do personagem para personificar o mau em sua forma mais selvagem, mais bestial. Na verdade, ele é o antagonista natural de qualquer "guerreiro honrado", de qualquer herói da literatura ou cinema, já que é um homem que foi corrompido pelo próprio poder, perdendo sua humanidade e se tornando algo que vemos brevemente mesmo em pesadelos.


O filme não nos trás a redenção desse vilão, ou sequer qualquer sinal de sua humanidade. Não nos faz gostar dele, sequer nos importar com seu destino. Como já disse, esse não é um filme de heroísmos e coisas do gênero. Não, a obra, na verdade, trata-se de um estudo do que faria um homem com todas as características e elementos próprios de um herói, mas sem aquilo que dá essência ao mesmo, sua bondade e integridade. Fora o interessante plot sobre o qual se constrói a história, o filme também merece bastante ser visto por sua excelente produção. Sério, embora o filme em questão seja bastante antigo, a sua fotografia e a ambientação rivalizam mesmo com filmes contemporâneos. Inclusive, tenho a forte impressão que muitas cenas de ação atuais, se inspiraram diretamente em algumas das sequências desse filmes. Na verdade, fazendo um pequeno parêntesis, tenho de comentar que qualquer fã do Tarantino( ao mesmo que se afirme publicamente como tal), tem a obrigação de ver esse filme, já que uma das melhores cenas de Kill Bill foi inspirada(para não dizer copiada) dele. Recomendo esse filme, sem exceções, portanto, a todos que queiram assistir a um filme que tenha ação mas que não perda, entretanto, sua qualidade e profundidade.



quinta-feira, 28 de agosto de 2014

DICA LITERÁRIA: O Homem Duplo, de Phillip K. Dick


Eu preciso de tempo
não de heroína, não de álcool, não de nicotina
não de ajuda
não de cafeina
apenas de dinamite e terebentina
Eu preciso de petróleo para gasolina
explosiva como querosene
com alta octanagem, sem chumbo
um combustível como
Gasolina(...)

Benzin, Rammstein

Um grupo de pessoas, baluartes morais de suas comunidades, representantes do verdadeiro espírito americano, ou, em resumo, um bando de caretas, se reúne no country club de sua cidadezinha, em uma bela tarde de verão, para ouvir a palestra dada por um agente disfarçado da narcóticos. O mesmo, discorreria sobre o mal que corroía o tecido social daquele tempo, as drogas, particularmente, sobre a pior de todas, a Substância D. Tirando essa ultima parte, quanto à temida Substância D( ou mais poeticamente chamada de Slow Death), imagino que qualquer leitor desavisado tenha identificado a cena, senão com alguma palestra que realmente assistiu, ou com alguma cena de filme, ou até passagem de algum outro livro que leu(pessoalmente, ela me lembra muito de uma cena de Medo e Delírio em Las Vegas). No entanto, embora tal passagem possa parecer comum na nossa atual política antidrogas, ela pertence, na verdade, a um livro de ficção científica escrito por Phillip K. Dick em 1973, chamado O Homem Duplo, ou no original A Scanner Darkly. Levemente diferente da nossa realidade, na distopia retratada pelo livro, praticamente toda a população está viciada em várias drogas ilícitas(e não estamos contando autoajuda). Nessa conjuntura, eleva-se um Estado policialesco que dá à política anti-drogas um ar verdadeiramente Orweliano.

Um exemplo disso é o próprio agente disfarçado citado( a propósito, o mesmo é o principal protagonista e também narrador), ele usa um traje que torna suas feições e traços indiscerníveis. No livro, ninguém, nem mesmo os superiores dos agentes disfarçados, sabem a real identidade deles(um exagero meio disfuncional ao sistema, na minha opinião). Ponto, que aumenta ainda mais a ideia de Estado Orweliano, porque qualquer um poderia ser um agente, desde seu amigo mais intimo, até sua namorada, mesmo seu irmão poderia ser um deles, e denunciá-lo às autoridades se você cometesse um erro qualquer. No entanto, o exercício das funções de judas nunca foi algo fácil( lembremos o que aconteceu ao pobre judas), sendo que, somando isso ao fato do protagonista ter acabado se viciando na malfadada Substância D( que consumiu sua sanidade como fogo à madeira), sua tarefa se tornou no mínimo impossível. Não melhorando a situação, quando seus superiores da Narcóticos abriram uma investigação quanto ao sujeito do qual ele se disfarçava, e lhe nomearam principal investigador. 
Já ia me esquecendo, mas adaptaram a obra ao cinema em 2006, com direção de Richard Linklater. Vi a pouco a obra, e achei bastante fiel ao livro. A propósito, o protagonista é interpretado pelo Keanu Reeves, a quem também(de forma absolutamente máscula, obviamente) sou apaixonado. É um dos meus atores prediletos.

Nesse minuto, imagino que quem esteja lendo esse texto pense algo como: Que enredo foda! E eu, como autor do texto, balanço a cabeça e concordo com o leitor imaginário. Sim, o enredo é excepcional.  Mas não só isso, as descrições e o desenvolvimento dos personagens também são memoráveis. Até porque, o livro é, em parte, autobiográfico o que sempre torna a obra muito mais viva, muito mais visceral. Phillip K. Dick, em muitas partes do livro relata experiências pessoais, da época em que ele e alguns de seus amigos se envolveram com o LSD e outras drogas. No entanto, que não se pense que o livro seja moralista, sequer que tenha em si alguma moral secreta ou qualquer mensagem feliz. Estamos falando da história da queda de homens e mulheres. Pessoas que, assim como Mariposas que circundassem uma lampada, foram queimados, consumidos por algo que inicialmente lhes prometia prazer, diversão, calor. Ainda no prefácio, K. Dick diz que as drogas não são uma doença, mas um erro de julgamento, um erro que é punido com uma severidade excessiva e que, só em uma visão próxima à da tragédia grega, ou melhor, em uma visão de moralidade neutra, poderia ser vista como plausível. 
Já me delonguei demais, imagino que você(exatamente, você mesmo!), esteja já pensando em sair dessa página devido ao seu transtorno de atenção nunca diagnosticado. Não, me delongarei mais, prometo. Só digo que livro é excelente, primoroso. Leiam logo isso! Sério, façam esse favor a vocês mesmos. Leiam K. Dick.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

DICA CINEMATOGRÁFICA - Hannibal - It's alive! It's alive! Again!



"(...)Está tão bem temperado e flambado
e tão adoravelmente servido em porcelana
e com um bom vinho e suave luz de vela
Sim, vou devagar, devo ser elegante
Porque você é o que você come
e você sabe o que é
(...)"

Sempre fugi da ideia de conceitos absolutos e de concepções maniqueístas. Creio, que embora esses sejam essenciais à existência do discurso, digo, à própria comunicação, já que precisaríamos de mais do que palavras, para passar uns aos outros as inúmeras tonalidades morais e existenciais da realidade, essa prática possui um defeito, uma limitação essencial. Ela faz com que as pessoas se acostumem tanto com a ideia de uma paleta de tons únicos, que se esqueçam que os mesmo são bastante incomuns. Na verdade, que não existem por essência, sendo apenas uma ideia platônica, um tipo ideal weberiano, apenas um exemplo. Mesmo a sanidade, um dos conceitos que temos por mais sólidos, se dissolve à uma análise mais acurada. Na verdade, mais do que isso, a sanidade, por si só não existe, é uma mera ficção. Ela é um pequeno padrão comportamental, absolutamente dependente de seu período histórico, e envolvida por uma infinidade de outros comportamentos, muitas vezes análogos, mas que são, por mera conveniência, tidos como loucura. A sanidade, portanto, é meramente uma forma aceitável de loucura. Conforme disse uma vez Caetano Veloso, olhando de perto ninguém é normal.
Definitivamente, de perto ninguém é normal!


De longe menos ainda...

Creio que deve ser por isso, e não só pela mera simpatia pelo mal que todos compartilhamos, que Hannibal Lecter é um personagem tão famoso no cinema e na literatura. Afinal, o mesmo é como Jano, possuindo duas faces absolutamente diversas, mas ao mesmo tempo, de mesmo princípio. Lecter é claramente insano por sua selvageria e crueldade(fora seus hábitos alimentares), mas, ao mesmo tempo, sendo sempre apresentado como uma autoridade na psiquiatria, seu discurso seria capaz, originalmente, de definir o que é, e o que não é sano. Dessa forma, Lecter, o louco canibal, possuiria em suas mãos as chaves da sanidade. Dado esse caráter instigante do personagem, torna-se mais compreensível, portanto, o receio que muitos tiveram quando a NBC anunciou estar produzindo um seriado com ele. Não nos esqueçamos o que um má produção pode fazer a uma franquia. Lembremos o que enterrou Hannibal Lecter nos cinemas. Sim, não finja que não se lembra daquele filme horroroso... Hannibal a origem do mal, filme que se destinava a explicar o início do personagem, mas que serviu apenas para jogar uma pá de cal sobre sobre ele e seus filmes. Entretanto, todos os temores ao fim se mostraram exagerados. Hannibal, a série, possuiu uma produção e execução excelentes, e um roteiro memorável. Hannibal está vivo novamente! It's alive! It's alive! Again! #risadamaligna


Antes que os haters de plantão tenham ataques alegando que se estaria lesando a santidade do personagem, têm-se de  se dizer que o período em que a série se passa, é uma lacuna tanto nos livros quanto nos filmes. Toda a trama ocorre no período anterior à prisão do personagem, sendo que, cronologicamente, ela se localizaria, mais especificamente, entre Hannibal a origem do mal, e Dragão Vermelho. Nesse período, conforme o canône oficial, Hannibal estaria auxiliando Will Grahaam e o FBI na caça de psicopatas. Além do mais, convenhamos, por mais que eu adore o Anthony Hopkins(e eu sinceramente, e de forma absolutamente hétero, amo-o de paixão),  ele não se parece nem um pouco com o personagem que é descrito nos livros. Lá, Lecter não só seria anos(quiçá décadas) mais novo, mas também seria ruivo(e, apenas por amor às descrições detalhadas, teria polidactilia nas duas mãos e pés). Dessa forma, por eliminação, e sem desmerecer os grandes méritos do titio Hopkins, Mads Mikkelsen seria mais apropriado para o papel. Sem contar, que ele também consegue ser bastante assustador, dada sua peculiar ausência de expressões faciais( assim como Nicolas Cage). Acredite, isso é bastante assustador, e em um ponto de vista positivo! Afinal, acho, a sério, Mikkelsen um excelente ator.


Recomendo a série, portanto, a todos aqueles que queiram passar seus momentos de ócio e procrastinação de forma produtiva, ou ao menos, extremamente prazerosa. Embora, seja obrigado, mesmo relutantemente, a avisar que estômagos de compleição mais delicada podem ter sérios problemas com a série. Não só pelas constantes menções ao canibalismo praticado pelo seu protagonista(uma alimentação com muita proteína animal é fundamental), mas também por um alto índice de mutilação e violência visual presentes em cada episódio(embora, considerando o nome da série ache isso bastante aceitável). Na verdade, um dos grandes méritos da série, e um dos motivos de ser tão difícil de indicá-la, é o fato dela ter elevado o gore a algo artístico, embora seja necessário assistir a série, para realmente entender essa afirmação.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

DICA CINEMATOGRÁFICA : Violação de Privacidade - Dies Irae, Dies Oblivion


O livro escrito será proferido,
em que tudo está contido,
de onde o mundo será julgado.
(Dies Irae - Trecho)

Na mitologia grega, acreditava-se que um dos rios que banhavam os Campos Elísios(análogo ao paraíso cristão), seria o Rio Lete, que garantiria aos habitantes do Hades o esquecimento, algo obrigatório no pós-vida grego. Curioso notar, que algumas correntes teológicas do cristianismo adotam a mesma ideia, digo, creem na necessidade do esquecimento para a existência do paraíso. Mais ainda, essas correntes acreditam que esse é o único modo de não se transformar a vida eterna em uma espécie, particularmente cruel, de danação. No entanto, partindo do pressuposto que são nossas lembranças e experiências que forjam nossa personalidade, nosso eu, o esquecimento necessário à eternidade acabaria sendo, ao final das contas, apenas uma modalidade ainda mais definitiva e eficaz de morte. Em outras palavras, o esquecimento é a própria ideia da morte, o fim do espírito, o apagamento do eu. Sendo que, em tempos tão narcísicos como o nosso, vivemos em uma constante tentativa de escapar ao inexorável esquecimento, às trevas fundamentais. Compartilhamos, com alguma regularidade variável, nossas fotos e pensamentos nas redes sociais, com o fim de que esses pequenos retalhos de nossas vidas sejam registros de nossas existências, provas vivas da vitória do eu, do espírito, em face do esquecimento, do tempo, da degradação. Sim, almejamos à antiga danação, ao inferno da memória, à dor eterna do ato de lembrar. Como disse Milton em seu poema, é melhor reinar no inferno que servir no paraíso.
Convenhamos,
a imortalidade moderna possui uma falha fatal...
depende que o outro realmente se importe conosco.


No entanto, por mais que queiramos, ainda não conseguimos nenhum meio de vitória final contra o esquecimento. Digo, as redes sociais, o maior recurso de afirmação de nossa singularidade, possuem, por seu próprio caráter volúvel, uma fugacidade  maior ainda do que a dos pobres suportes de carne que sustentam nossas consciências. Ainda não vencemos a morte. Não conseguimos construir mausoléus e pirâmides, lembretes e marcos de nossa chegada e partida, que realmente, tanto resistam ao tempo, quanto possam demarcar definitivamente nossa existência no universo. Entretanto, o filme Violação de Privacidade ou, em seu nome original, The Final Cut, produzido em 2004 e dirigido por Omar Naim, nos possibilita, talvez, um vislumbre do nosso próximo passo no esforço de negação da morte, em nosso rumo à eternidade do lembrar.

O filme parte da premissa de que, em um futuro bastante próximo, se desenvolveria uma tecnologia que possibilitaria a inserção, mesmo antes do nascimento, de uma minúscula câmera nos nossos centros nervosos. Esse aparato, gravaria cada imagem e som captados pelo seu portador, até o fim de sua existência, quando ele seria retirado, e a gravação seria editada em forma de um filme que resumiria a vida do sujeito. Esse, seria uma espécie de ultimo tributo à existência do indivíduo, ou melhor, seria o obituário por excelência, a mais perfeita e completa homenagem que se poderia fazer ao morto. Embora inicialmente mórbida, a ideia que centra todo o enredo, não está muito distante do que tentamos fazer diariamente com as redes sociais, ao espalhar, pouco a pouco, nossas idiossincrasias e pequenos pecados pela internet. No fim, todos somos alquimistas que procuram o elemento que nos dará, finalmente, a tão sonhada imortalidade. No entanto, a imortalidade tem um preço, um alto preço, que é o julgamento de nossos atos por um terceiro. Quer seja Deus, quer sejam nossos amigos na timeline, ou, como no filme, o editor da póstuma gravação, alguém assistirá e traçará julgamentos sobre nossos pecados mais íntimos.
E é esse papel de uma divindade julgadora, de uma multidão faminta, ou de um simples observador, que Robbin Willians interpreta no citado filme. Ele é o outro, ele é a balança divina que, ao contrário de julgar nossos pecados, os edita e corta, para o público em geral e em particular nossos amigos mais chegados, aquelas pequenas memórias que nos envergonham, ou que, à luz do dia, parecem sombrias demais para existirem. Entre Deus e o Facebook, Robin Willians se coloca em um meio termo. Sendo ao mesmo tempo deus, e ao mesmo tempo homem. Confesso que gosto, particularmente, de sua atuação nesse filme que, ao contrário de todas as outras obras que já assisti dele, é praticamente destituído da comédia que sempre lhe foi comum em seus papeis. Sendo que agora, na ausência do ator, assisti-lo se torna quase obrigatório, afim de podermos, de alguma forma, ao menos conhecer um lado do ator com o qual tivemos pouco ou nenhum contato.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

DICA CINEMATOGRÁFICA: House of Cards - Leis, salsichas e Shakespeare



Existe um velho ditado, segundo o qual, se as pessoas soubessem como as leis e as salsichas são feitas, não se fariam tantas leis, tampouco se comeriam tantas salsichas. Embora um bocado tolo, esse velho provérbio não deixa de carregar uma verdade pouco agradável. O processo de criação de uma lei é muito mais complicado e tortuoso do que a maior parte das pessoas é capaz de imaginar. Nesse ponto, deixo claro que, quando digo que fazer uma lei é uma tarefa tortuosa e complexa, não estou me referindo ao processo legislativo, que já é, por si só, essencialmente truncado mesmo para os mais entendidos(refiro-me aos iniciados nos arcanos jurídicos), mas falo, na verdade, do processo político atrás da criação de cada lei. Para ser mais específico, falo das conversas e discussões de gabinete, dos lobismos, das pequenas intrigas, de tudo aquilo que apenas cogitamos, mas que, na realidade, não sabemos se, como, ou sequer em que proporção, ocorre nos corredores do poder, mas que temos, entretanto, a mais absoluta certeza, que são fatores decisivos para a tomada de cada decisão, a elaboração de cada lei.


Creio que é a essa ignorância geral a que todos sofremos com relação à máquina do poder,  a quem, House of Cards, uma série produzida pela Netflix em 2013, deve em boa parte o fascínio que exerce sobre o seu público. Obviamente, não estou dizendo que a série não seja boa por si só. Tenho até de confessar, que ela é, sem dúvida alguma, um dos melhores seriados a quem tive o prazer de acompanhar em minha patética e curta existência. Entretanto, em um mundo em que se tornou comum as pessoas se declararem "apolíticas"(o que quer que isso signifique para elas), e a, comumente, identificarem a política como algo genuinamente maléfico(senão o próprio mal), o seriado nos enfeitiça graças ao fato de mostrar algo que normalmente tanto nos é negado, quanto também voluntariamente esquecido por todos nós. A arena política, o grande mercado de carnes, onde não existem os tons de branco e escuro das campanhas eleitorais, mas apenas cinza, e que influencia, em uma grande e média escala, a nossa vida e as vidas de uma infinidade de outros indivíduos. Nos não sabemos como as coisas são feitas, como os acordos são chancelados, como os reis sobem e caem de seus tronos. Não. Somos meros cidadãos, plebeus, e, assim como sempre foi, somos, ou ao menos tentamos ser, indiferentes aos deuses que, em seu distante Olimpo, nos julgam e tem nosso destino em suas mãos.


A propósito, falando em deuses e reis, não posso deixar de dizer que o protagonista da série, Frank Underwood(Kevin Spacey), é inspirado(senão absolutamente idêntico), ao personagem Ricardo III da peça de mesmo nome, de autoria de William Shakespeare. Bom dizer, que ambos, tanto Ricardo como Underwood, compartilham a mesma sina e história, ou seja, ambos estão muito perto e muito longe de seu maior objeto de desejo, o trono. Ambos também não medem esforços para alcançar definitivamente a coroa, vivendo em um mundo sem regras morais, sem nenhuma obrigação ou culpa, apenas tendo em vista o seu objetivo. Dessa forma, House of Cards, assim como a já citada peça do célebre escritor inglês, nos enfeitiça graças à perversidade, à pura vileza de seu personagem principal. Sim, meus caros amigos, sinto lhes dizer, mas todos sofremos de uma certa simpatia pelo mal, pela baixeza, todos sentimos vertigem frente à escuridão. Adoramos o vilão que, mesmo tendo consciência de sua própria vileza, se regozija de sua maldade, festejando a cada ato torpe que acerta o seu alvo, a cada inocente que cai sob seus golpes. Claro que não estou dizendo que gostaríamos de repetir seus atos, ou sequer que o aprovaríamos se estivéssemos ao seu lado. Apenas gostamos, ao menos eu julgo, de contemplar o abismo, e sermos, ocasionalmente, também vistos pelo mesmo.

Mas confesso que não é apenas pelo tema e pelo carisma maléfico de seu protagonista, que o seriado em questão é tão fascinante para mim. Não. Além da boa direção e fotografia, toda a trama, assim como o desenvolvimento dos outros personagens, é tão bem desenvolvida,  tão trágica, mas ao mesmo tempo tão realista, que confesso que, por todo o tempo que assisti ao seriado, fiquei a mercê de seu feitiço, fui vítima de seu fascínio. Cheguei a um ponto, em que anotei cada frase de efeito usada, me afligi pela queda e desventura de cada personagem, alegrei-me por suas vitórias(mesmo quando imorais), entristeci-me pela derrocada de seus planos(principalmente quando essa era justa). Céus. Pode ser que tudo não passe de um fruto de minha fraqueza(como quase sempre é), mas realmente apreciei cada instante da série, sendo que a recomendo fortemente para qualquer um que queira passar bem o seu tempo livre.





I'm Back, Baby