domingo, 28 de dezembro de 2014

DICA LITERÁRIA: O Rei de Amarelo, de Richard W. Chambers - Carcosa, o lugar do impensável


“Seu olhar caiu sobre o livro amarelo que Lord Henry lhe enviara. O que seria isso, perguntou-se(...) após alguns minutos, estava absorto. Era o livro mais estranho que já havia lido. Parecia que, em vestes refinadas, e ao som do delicado de flautas, os pecados do mundo desfilavam, em silêncio, diante dele. Coisas com que havia sonhado  de modo vago tornavam-se reais para ele. Coisas que jamais imaginaram eram-lhe reveladas.”
O retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde

Segundo um velho ditado, somente tememos aquilo que não conhecemos, ou seja, o medo, em sua forma mais essencial, está sempre vinculado à ignorância, a um desconhecimento fundamental sobre o objeto temido. Tendo isso como premissa, torna-se claro que algo cuja compreensão estivesse além de qualquer possibilidade do entendimento humano, ou seja, algo que fosse essencialmente encoberto a nossos olhos, seria obrigatoriamente objeto por nós de temor, pode-se até dizer que personificaria o próprio medo. Nem preciso dizer, que boa parte das obras de horror e de suspense do cinema e da literatura levam em conta a mencionada relação entre o medo e o desconhecido na construção de suas narrativas e enredos. Alguns bons exemplos do citado, são filmes como Alien, o 8 passageiro, Sillent Hill (aqui tanto o filme de  quanto o jogo) e o seriado Lost, com a sua misteriosa fumaça negra ( que ninguém sabe, até hoje, o que diabos era).



“O mar quebra pela orla, vago,
Os sois gêmeos afundam sob o lago,
(...)"

Mas, embora de uso comum, raramente a relação entre o desconhecido e o horror foi tão bem traçada como na obra de autores como Richard W. Chambers e H.P Lovecraft. Ambos, inclusive, foram fundamentais para o desenvolvimento do citado postulado, já que construíram obras onde a impotência da ação humana frente ao desconhecido era total(o que faz, por consequência, que o horror seja ilimitado), e não meramente relativa, como comumente se mostrava nas obras do gênero e, na maior parte das vezes, mesmo hoje ainda se faz. Mas creio que não estou sendo claro ao meu querido(a) leitor(a) imaginário(a), portanto, desenho! Na maior parte dos filmes e livros de terror, existe um desvelamento progressivo do objeto temido, ou melhor dizendo, a cada vez que é confrontado com o objeto de medo, o protagonista e nós, os expectadores ou leitores, conhecemos o mais, portanto, o tememos menos. Em resumo, existe um anacronismo entre aquilo que se pretende, gerar medo, e aquilo que se faz, diminuir progressivamente o medo criado.

"(...)
As sombras se alongam,
Em Carcosa.
(...)"


O que os dois citados autores realizaram foi o processo contrário, a cada vez que temos mais contato com suas obras, cada vez menos sabemos o que se passa, assim como os protagonistas o que, portanto, faz com que o objeto pareça cada vez mais terrível, cada vez mais passível de causar medo. No entanto, existe uma curiosa diferença entre os dois, enquanto que H.P. Lovecraft desenvolve seu objeto de medo a partir de algo sólido, de um plano de existência avesso ao nosso, Chambers no seu O Rei de Amarelo, constrói o terror sobre o puro pesadelo, sobre uma existência que é puramente imaginária mas que, de alguma forma, vaza seu conteúdo para o mundo real. Em outras palavras, enquanto que o medo é uma relação de consequência no primeiro, o segundo tem o medo não como um elemento de narrativa, mas como um personagem.
"(...)
Estranha é a noite em que as estrelas negras sobem,
E estranhas luas os céus percorrem
Mas mais estranha é a
Perdida Carcosa.
(...)
Mas já vamos ao terceiro parágrafo e apenas mencionei de passagem o livro a que pretendia resenhar. Mais uma vez (e não será a ultima), me perdi em elucubrações e pensamentos vagos (meu triste fado). Mas deixando de lamentações, creio que já é mais do que hora de irmos ao que interessa, ou seja, o livro! Bom, de início, a obra O Rei de Amarelo foi publicada em 1895 e é formado, basicamente, por vários contos que vão desde o terror ao romance desesperançado. A propósito, desesperança é a palavra chave para se entender o livro, que em uma narrativa sã, por vezes também febril e ocasionalmente mesmo insana, sempre nos apresenta o mundo como um lugar decadente, onde os sonhos e as ilusões estão sempre fadados a naufragar frente à dureza do cotidiano. Sim, o sentimento de decadência do fin de siècle impera por todo livro, sendo que o amarelo com o qual se veste o onipresente Rei de Amarelo possui esse exato significado, decadência. 
"(...)
 Que morra inaudita,
Onde o manto em retalhos do Rei se agita;
A canção que entoarão às Híades na
Obscura Carcosa.
(...)"

A escolha da cor para as vestes do rei, a propósito, é bastante curiosa, embora talvez um pouco datada. Amarelos eram os livros franceses(lembrando que todos os contos têm como pano de fundo a França), normalmente de conteúdo polêmico ou liberal demais para a puritana sociedade inglesa, que os encarava como uma fonte de vícios e imoralidades. Não nos esqueçamos que estava em voga  a ideia de que certas ideias, certos pensamentos e palavras eram essencialmente perigosos, e deviam ser evitados. Sendo os espelhos da alma, os olhos eram uma relevante fonte para a corrupção da mesma. Nessa ótica, faz mais sentido que um dos motes centrais do livro, seja a ideia de uma peça fictícia, um livro, que causaria loucura a quem a lesse, e esse mesmo se chamaria O Rei de Amarelo, numa clara menção, aos citados livros franceses.
"Canção de m’alma, minha voz finada;
Morra sem ser entoada, como lágrima jamais derramada
Seca e morta na
Perdida Carcosa”.

“Canção de Cassilda”, em O Rei de Amarelo, ato I, cena 2

Mas imagino que muitos de meus leitores imaginários estejam se perguntando sobre Carcosa, já que provavelmente foi apenas pela menção dessa palavra que começaram a ler esse texto. Sim, apenas pela menção dessa palavra! Não, não estou exagerando. Essa curta e enigmática palavra, assim como a sua relação com O Rei de Amarelo, foram um dos pontos centrais na série True Detective, produzida pela HBO em 2014, sendo que não posso deixar de dizer, que a mesma é absolutamente obrigatória. Sim, todos, todo mundo, EVERYONE, deve ver essa série que, na minha opinião, foi de longe uma das melhores produções de todo o ano!!! Mas, obviamente, antes de assisti-la, leiam o livro, que dá tão poucas indicações quanto ao que seriam Carcosa e a real identidade do Rei de Amarelo quanto a própria série, mas que é fundamental para se entrar no clima menfítico e lovecraftiano que ela desenvolve. Deixo então, o trailer do seriado que mencionei, e a sincera recomendação que todos vocês, minhas pequenas crianças da noite, leiam O Rei de Amarelo. No mais, encerro essas tortas linhas invocando as bençãos do desconhecido sobre todos vocês. Adeus! 


sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Aleatórias: The Devil's Carnival 2 - Fa la la, it's off to hell we go


Fa la la, it's off to hell we go.
Cross you heart and hope to die,
It's off to hell we go
Fa la la, it's off to hell we go.
(...)
Off to hell we go - The Devil's Carnival song

Quem acompanhou os últimos textos do blog, particularmente o referente ao musical The Devil's Carnival, deve ter reparado que sou um fã, senão uma tiete, do citado longa. Tendo isso em vista, creio que ninguém ficou surpreso com o meu acesso de alegria quase histérico quando, no dia 5 de novembro, os organizadores do primeiro filme anunciaram a sua tão esperada continuação. Sim, The Devil's Carnival possuirá uma continuação onde poderemos ver o inferno galgado os degraus rumo ao céu. Isso será épico!!! Deem uma olhada no trailer oficial da sequência que foi lançado a pouco, não existe maneira de não se entusiasmar, fora que trilha sonora promete ser tão boa quanto a do primeiro filme!


DICA CINEMATOGRÁFICA: Mushishi - Nem amigos, tampouco inimigos, apenas estranhos vizinhos...


"O universo não foi feito à medida do ser humano, mas tampouco lhe é adverso: ele lhe é apenas indiferente".

Não sou um homem religioso(na verdade sou bem o oposto disso), entretanto, olhar para o céu sempre me dá um sentimento de transcendência. Não, não se preocupem, não tentarei lhes empurrar garganta abaixo minhas especulações e teorias sobre o sentido da existência. Não tenho certeza quanto a possibilidade de realmente se saber algo sobre o assunto, e tampouco me acho habilitado suficiente para saber alguma coisa dele melhor que qualquer outra pessoa. Apenas gosto de olhar para o céu, para o bailado das nuvens, para o lento caminhar do sol pela cúpula celeste, e pensar o quão grande e velho é o universo e o quão pequeno e jovem são o conjunto dos sonhos, desejos e interrogações a que chamamos de humanidade. Não me importa saber como tudo surgiu ou se alguém foi(e é) responsável por manter a ordem do relógio denominado universo. Não, sou um bocado pragmático quanto ao assunto. Nasci com um belo céu azul sobre minha cabeça, o mesmo que olhou placidamente pequenos peixes saírem do mar e se tornarem anfíbios e depois gigantes escamosos, e aceito o mesmo como algo eterno e indiferente a mim. Não sou arrogante, sei que o universo funciona sem e despeito de mim e não me entristeço com isso( ao menos não mais), apenas ocasionalmente olho para o céu e contemplo melancolicamente minha pequenez. Ah, o céu...

Mas creio que estou me perdendo em minhas predileções sobre o infinito. Confesso que essa é uma falta já muito peculiar à minha excêntrica persona. Entretanto, o principal motivo de eu haver começado a escrever essas tortas linhas não é dissertar quanto à minha mediocridade existencial, embora ela seja um fato. Não, esse texto se presta a falar sobre um anime, esse inspirado em um mangá homônimo, chamado Mushishi. Desde logo, tenho de dizer que desde Monster(link da crítica aqui) não encontro um enredo que tenha prendido tanto a minha atenção quanto o anime do qual falamos. No entanto, ao contrário de Monster que se constrói sobre uma longa e sólida narrativa onde os fatos se sucedem de forma rápida e abrupta, aqui existe um grande arco descontínuo de histórias independentes que apresentam um desenvolvimento essencialmente moroso. Dizendo de outra forma, enquanto que para compreender Monster se deve assistir a obra como um todo(episódio por episódio), Mushishi apresenta uma estrutura onde a cronologia ou sequer o tempo são claros ou importantes para a narrativa, na verdade, o anime é marcado pela descontinuidade, sendo que para ser compreendido, esse deve ser apreciado aos poucos, aos bocados, como um bom café, um vinho decente ou um cigarro de palha.



Mas deixemos de conversa e passemos logo ao enredo. Esse se passa no Japão, embora o período histórico seja de difícil determinação(pessoalmente, eu chuto que ocorreu não muito antes da Segunda Guerra).  O personagem principal, Ginko, é um especialista em Mushi, por isso um Mushi-shi( shi em japonês quer dizer mestre, ou seja, ele é um mestre em Mushi). Mas imagino que o meu leitor potencial, absolutamente enervado e em vias de abandonar o texto, esteja se perguntando: o que diabos é um Mushi? E por que esse idiota não explicou isso até agora?! Bom, quanto a primeira indagação, confesso que mesmo eu ainda não entendi exatamente o que eles são. Os Mushis são apresentados no anime como uma espécie de seres conceituais, eles encarnariam aspectos da vida e da existência, e de alguma forma regulariam o ciclo natural ou mais do que isso, todo o universo. No entanto, eles não existem de fato, digo, eles não são feitos de matéria existindo apenas em uma forma ideal, ou melhor, em um outro plano de existência, embora tenham influência direta no mundo material. Mas eu sei que isso soa confuso, então darei um exemplo...
Minuto em que algumas pessoas pensam: What the fuck is this shitt?
This is fucking serious man! What hell going on???
Fuckin'... what the fuckin' fuck... who did the fuck... fuck this fuckin'...how did two fuckin' fucks... fuck!

Sim, eu sou um sádico que mostra imagens gore para curiosos incautos, no entanto, por mais bizarra que as imagens anteriores pareçam a ideia por trás delas é incrivelmente boa(e não é gore). Nesse episódio, um dos melhores na minha opinião, uma criança vive há anos enclausurada na mais profunda escuridão. Não, ela não era cega, ao menos não no início. De alguma forma, seus olhos desenvolveram uma progressiva alergia à qualquer tipo de luz, de forma que, depois de algum tempo, ela só pode suportar viver na escuridão total. No entanto, no decorrer do episódio se descobre que a alergia à luz que essa criança possuía era causada por um Mushi, na verdade, por um específico Mushi que se alimentava da escuridão e havia parado nos olhos dela por puro acidente. Diante disso, o protagonista inicia um tratamento na criança, com o fim de que ela se restabeleça e os Mushis sejam expulsos de seus olhos. Nesse ponto, creio que é onde se mostra a maior genialidade do anime, já que os citados Mushis são mostrados não como vilões, tampouco como uma punição divina ou coisa que valha. Eles são apenas um aspecto da natureza que uma vez esbarrando na atividade antrópica podem causar consequências desagradáveis. Questionar a moral ou os motivos de um Mushi é tão razoável quanto fazer o mesmo quanto à uma micose, a uma ameba ou ao vírus do ebola. Sei que chamar isso de genialidade pode parecer de início meio estranho, mas consideremos o quão raro é vermos uma narrativa onde o problema ou o objeto de tensão da trama não são tidos como moralmente maus, ou são frutos da punição de uma transcende. Vivemos tempos maniqueístas e obras como Mushishi são absolutamente válidas para a reflexão de nosso lugar no universo.
Mas creio que me já me alongo demais em um texto que deveria ser essencialmente curto. Apenas gostaria de deixar patente minha recomendação à essa poética e reflexiva obra, que a despeito de sua morosidade ou da estranheza de seu plot, é uma das análises mais adultas e sóbrias que encontro sobre a real relação entre o homem e a ordem natural ou o universo (ou pelo menos em que patamares ela deveria se manter). Citando livremente uma das mentes que mais admiro, o infelizmente póstumo Carl Sagan, "o cosmos é interessante ao invés de perfeito, todas as coisas não fazem parte necessariamente de um grande plano, tampouco tudo pode estar necessariamente sobre nosso controle". No fim das contas, apenas somos mais um tripulante nesse pequeno pedaço de rocha que vaga pelo infinito.



sexta-feira, 31 de outubro de 2014

ALEATÓRIAS - Marvel is love - YES! YES! YES! YES!

Sei que já é pauta fria, entretanto, não posso deixar de comentar a melhor notícia que recebi em semanas! Não, não ganhei na loteria, não descobri que herdei uma fortuna de um parente rico distante, tampouco sucederei um trono e viverei o resto da minha vida em luxúria...pensando bem, a notícia não era tão boa assim #tristeza #vidademerda. Anyway, foda-se, estou feliz! A Marvel anunciou os filmes que produzirá nos próximos anos. Sim! Exatamente isso que você ouviu amigo marvelete e incauto amigo "estou só de passagem", já sabemos todos os filmes da Marvel que sairão nos próximos anos. Todos! Todos! #AlegriaEndless Mas o melhor de tudo é que mais filmes de heróis da Marvel também quer dizer mais filmes de heróis de outras editoras. Por que vocês sabem, qualquer ideia que dê infindáveis montes de dinheiro é boa demais para não ser copiada... 

DICA CINEMATOGRÁFICA: The Devils Carnival - Deus e o diabo na terra dos malabares


(...) O riso é a fraqueza, a corrupção, a sensaboria da nossa carne. É o folguedo para o camponês, a licença para o avinhado, mesmo a Igreja em sua sabedoria concedeu o momento de festa, do carnaval, da feira, desta poluição diurna que descarrega os humores e permite outros desejos e outras ambições...Mas o riso permanece coisa vil(...) 
O Nome da Rosa. Eco, Umberto

Creio que a maior parte das pessoas gosta de manter durante seu cotidiano uma certa segurança, um senso de previsibilidade. Filmes e séries são o melhor exemplo disso. Normalmente precisamos da opinião de um amigo, de um blogueiro de confiança(Moi) ou, em resumo, de um terceiro(Euzinho novamente) para podermos decidir se vamos ou não empreender nessas obras um pouco de nosso precioso e limitado tempo. Deixe-se claro aqui, obviamente, que encaro o tempo, o nosso tempo, como algo extremamente limitado. Infelizmente somos seres finitos e finitas são nossas ações e nossas possibilidades de interação, ou seja, finitos são os filmes, séries e até mesmo livros que podemos ter contato em nossas vidas. Dessa forma, fica evidente que toda vez que empreendemos tempo na leitura de um livro ruim ou de um filme medíocre, perdemos para sempre a possibilidade de assistirmos ou lermos algo realmente válido. No entanto, ao mesmo tempo que a segurança nos trás a previsibilidade, ela também limita nossas possibilidades de escolha, fazendo com que muitas vezes não vejamos um bom filme, apenas porque esse não é muito conhecido. Dessa forma, é necessário sempre um certo pioneirismo, sempre uma certa impavidez, para não ficarmos estagnados em um mesmo nicho artístico para sempre. E foi em um desses temerários arroubos que conheci o musical do qual vim falar hoje, The Devil's Carnival.

Já de início, confesso que comecei a assistir ao dito filme com expectativas muito baixas, na verdade, eu quase tinha a certeza que ele seria uma catástrofe(o que talvez explique o fato de eu ter gostado tanto dele no final). Só para se ter uma ideia, o diretor do filme, Darren Lynn Bousman, dirigiu também Jogos mortais 2, Jogos mortais 3 e Jogos mortais 4, ou seja, ele dirigiu todos os longas da franquia que eu não gosto! Mais ainda, ele foi o responsável, ao menos na minha simplória opinião, por destruir parte do charme do filme original para toda a posteridade! Ou seja, ele ferrou com meu filme(tudo bem, parei com o choro)!!! Também não deixo de notar que é bem visível que o filme foi feito com um orçamento meio apertado. Sério, a gente sempre repara nisso... particularmente em tempos de produções tão faraônicas quanto atualmente. No entanto, a despeito do diretor ou do dinheiro que foi gasto para produzir o longa, o que temos no fim é uma ideia excelente, um roteiro extremamente palatável, boas interpretações e uma trilha sonora(é um musical afinal de contas) absolutamente invejável, em resumo, temos um excelente, embora excêntrico, filme.


E quando falo excêntrico não estou exagerando nem um pouco. O enredo, em seu plot mais básico, mistura as fábulas de Esopo e a mítica cristã ao som de traquinagens e melodias circenses. Sim, céu e inferno são retratados aqui como um grande circo. Na verdade, apenas o inferno, porque não temos mais do que um mero vislumbre da terra dos justos. No entanto, o inferno, onde se passa toda a trama, esse sim é um autêntico circo, e não falo apenas no sentido metafórico. Os demônios são todos retratados no filme como artistas de um show itinerante, sendo que as torturas dadas aos pecadores se constroem ao redor das apresentações que esses artistas/demônios realizam. Mas o mais interessante, é que esses números protagonizados por pecadores e demônios não só se constroem a partir do "pecado capital" que levou o condenado à inglória vida do abismo, mas também  são uma recriação de conhecidas fábulas. Fábulas essas, que exercem uma importância imensa na trama, já que os citados pecados não são nada mais do que a aplicação prática da pequena lição moral que existe ao fim de cada história criada por Esopo. 
Mas imagino que estou sendo um pouco confuso, então darei um exemplo: O primeiro número a ser apresentado conta a história de Tamara, uma mulher cujo principal pecado foi sempre confiar demais nas pessoas, mesmo que essas fossem claramente não confiáveis(inclusive, ela foi morta por seu namorado bad boy). No inferno, seu tormento/número se constrói a partir do conto do sapo e do escorpião, história essa que tem como moral exatamente não confiar, não depositar afeto ou confiança em absolutamente qualquer um. Por obvio, sei que nesse exato momento alguns leitores devem estar se perguntando que diabos de história com sapos e escorpiões é essa. Então, de forma breve, lhes narro a fábula: Durante a época das chuvas, um pequeno riacho que cortava um bosque se transformou em um caudaloso rio. Um escorpião que morava na região pediu então ao sapo, um amigo seu, que lhe levasse à outra margem. No entanto, o sapo resistiu quanto à ideia, com medo de ser ferroado. Mas o escorpião era insistente, e acabou convencendo ao sapo de lhe levar ao outro lado do rio. Entretanto, antes que chegasse ao meio do riacho o escorpião picou o sapo, que disse: Por que você fez isso? Ambos vamos morrer agora! Sendo que foi respondido pelo escorpião: Fiz isso porque essa é a minha natureza. 
Poderia ainda tecer mais comentários sobre as outras histórias que forjam a narrativa, no entanto, não quero dar spoilers. Apenas deixo aqui minha mais sincera recomendação ao filme. Como já disse, ele tem um bom roteiro, boas interpretações e uma memorável trilha sonora. A despeito de qualquer coisa, esse é realmente um filme que vale a pena ser assistido!




domingo, 26 de outubro de 2014

ALEATÓRIAS - O fim de uma era - Boardwalk Empire


Os eventos que ocorreram hoje(ontem), marcam o fim de uma era, o término de uma época dourada. Não, não estou falando das eleições presidenciais. Por que diabos todo mundo só fala nisso?! Boardwalk Empire acabou, assim como meu mundo! #TristezaEndless Mas, falando sério, sinto sinceramente pelo fim de uma boa série(resenha da mesma no link), embora entenda que o mesmo seja necessário. Em todas as suas cinco temporadas, a série sofreu uma visível perda em sua qualidade de enredo, tornando-se um pouco confusa e até mesmo desgastante até para o fã mais devotado(EU). No entanto, pessoalmente acho que a série ainda tinha fôlego para mais uma temporada ou duas, claro, isso antes que todos os personagens principais fossem sistematicamente mortos, cortando meu coração pedaço por pedaço. Anyway, acabou. As cadeiras foram postas em cima das mesas, as luzes começam a se apagar e a orquestra toca Balão Mágico(a música oficial para término de festas). Minha ultima lamentação, e essa deixo para a posteridade, foi não ter ouvido(e olhe que esperei até o instante final), o seguinte:

Hello, my name is Tommy Darmody. You Kill my father. Prepare to die.*




*Se você não pegou essa piada, é sinal que nunca assistiu A Princesa Prometida. Aqui vai a cena que gerou essa piada de merda.(link)

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

AMERICAN VAMPIRE - "Este não é o vampiro de sua irmãzinha"


"(...)

Cause all you people are vampires
And all your stories are stale
And though you pretend to stand by us
I know you're certain we'll fail
(...)"
Perhaps Vampires is a Bit Strong But... - Arctic Monkeys

Nenhum ser mítico possui presença tão recorrente na cultura pop quanto os vampiros. Essas adoráveis e perversas crianças da noite não só estão presentes(embora nas mais diversas versões) em praticamente todos os panteões mitológicos que já existiram, como atualmente também ganham um espaço cada vez maior nas artes, em particular, no cinema. Sim meus caros, os malditos sanguessugas estão dominando o mundo. Corram para as montanhas! Estoquem água benta e estacas de madeira! Encomendem suas almas ao criador(se vocês forem ateus como eu, fu*)! Mas voltando ao assunto, embora os sugadores de sangue estejam cada vez mais presentes, suas características, seus poderes e, em particular, suas fraquezas, estão se tornando cada vez mais diferentes de sua versão mais clássica. Tão diferentes que a cada dia se torna mais difícil ainda lhes identificar como vampiros. Dizendo de outra forma, o vampirismo atualmente traçado por sagas como Twilight e True Blood transformaram os sanguessugas, que até ali eram mortos vivos amaldiçoados à sede eterna, em galãs teen. Ser vampiro atualmente não é mais uma maldição, mas uma boa oportunidade para ser imortal, ter força e velocidade sobrenaturais e, talvez, emitir luz própria(assim como a fada sininho).

Obviamente, não estou aqui para traçar juízos de valor sobre as duas obras que citei(embora pessoalmente eu ache Twilight bem medíocre). Apenas as mencionei como contraponto à obra a que esse texto se destina recomendar, a fenomenal American Vampire, escrita por Scott Snyder(algumas histórias foram escritas também por Stephen King), desenhada pelo brasileiro Rafael Albuquerque, e publicada pela Vertigo a partir de 2010. A revista possui como plot básico apresentar os vampiros de uma forma muito mais brutal , muito mais sanguinolenta, do que costumamos ver atualmente. O enredo parte da premissa que existem diversas espécies de vampiro, sendo que ocasionalmente uma nova espécie surge(talvez por mutação, talvez por sorte, não se sabe ao certo). No entanto, quando uma nova espécie, a primeira a surgir na América, nasce a partir de um conhecido facínora do velho oeste, começa uma guerra silenciosa do mesmo contras as velhas e decadentes raças vampiras europeias, ao mesmo tempo que os EUA dão os primeiros passos na consolidação da nação que atualmente conhecemos. Sim, você entendeu direito. A HQ não é apenas uma narrativa história que começa no velho oeste, mas também tem fucking vampiros! Deuses! Isso só ficaria melhor se houvesse um jeito de enfiar um Jaeger e alguns monstros gigantes interdimensionais na história! Não, espere ai, pensando melhor... esquece... ia dar merda. Bad idea.

Em um anúncio da revista vetado pelo pessoal da Vertigo, vinha escrito o seguinte: "Este não é o vampiro de sua irmãzinha".


Mas voltando ao assunto, a revista é primorosa quanto ao seu enredo e narrativa. Na verdade, é tão bom que nem parece que o Stephen King ajudou a escrever(clique aqui para ouvir minhas risadas malígnas)! Toda a trama e histórias secundárias são absolutamente bem costuradas, bem enredadas umas às outras, de forma que quando surge a segunda protagonista da história, a fodástica Pearl Jones(essa mulher é mais bad ass que o Blade), a narrativa, mesmo que contada a partir de dois personagens em momentos históricos diferentes, não se torna nem um pouco confusa, sequer menos interessante. Também não posso fazer menos que elogiar o desenho e a arte da revista, que também são de fazer inveja a qualquer publicação de respeito. Ainda nesse ponto, uma das coisas que mais me chamou a atenção, foi sempre se retratar os diferentes tipos de vampiros com distintas deformações na mandíbula e no rosto. Um traço que contribuiu em muito para demonstrar à monstruosidade dos personagens e que remonta a filmes da década de 1980 e 1990, como Buffy The Vampire Slayer(1992), Angel(1999-2004) e The Lost Boys(1987). Eu sei que o mesmo também está sendo feito na recente série The Strain, produzida pelo Guilhermo Del Toro, mas confesso que também não considero muito como vampiros os monstros dessa série. Na minha opinião, eles são só uma espécie de zumbi com alergia à luz, só isso! 
Em um outro anúncio vetado também pela Vertigo, a personagem Pearl aparecia perto de uma pilha de corpos e dizia o seguinte: "Eu não solto faíscas quando transo." Se você não pegou a indireta, isso remete a uma certa raça vampírica que brilha...
Sem mais delongas, sem mais enrolação, recomendo esse primoroso quadrinho a qualquer um que, como eu, goste de faroeste, vampiros, e uma larga dose de violência e sangue. No entanto, ao contrário do que já fiz algumas vezes, não coloco nenhuma restrição ao meu público de estômago mais fraco. A HQ está muito longe do gore, e boa parte da violência e sangue que aparece nela, é tão estilizada, tão cartunizada, que sinceramente creio poder não afastar até ao mais medroso leitor. Hasta Luego a todos! E não se esqueçam de armazenar, como já recomendei, alho, água benta e estacas. Não fraquejem! Mais dia ou menos dia os malditos sanguessugas sairão de suas tocas, sendo que como bons caçadores de vampiros temos sempre de estar preparados para o pior! #13BeijosNoCoração #45éNúmeroDeVampiro #EstejamProntos

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

QUE FILME MERDA! Alien vs Predador


Segundo a lógica mais comum, a soma de dois elementos positivos resultaria, inevitavelmente, em um elemento mais positivo ainda. Dizendo de outro modo, um mais um é sempre igual a dois. No entanto, a despeito de qualquer norma lógica ou lei natural, o cinema possui seus paradoxos, fazendo com que ocasionalmente, senão majoritariamente, um mais um não resulte em dois mas sim em zero, ou até mesmo em um número negativo que tenda ao infinito. Podemos ver um bom exemplo disso no filme Alien vs Predador de 2004. O citado filme possui o mérito, provavelmente seu único mérito, de ter conseguido arruinar ou ao menos jogar uma boa pá( ou um caminhão de grande tonelagem) de cal sobre duas franquias de clássicos da cultura pop. 
Um deles possui um apetite sádico por caçar criaturas sencientes, empalá-las, e colocar suas cabeças em sua sala. O outro, além de possuir sangue ácido, uma pele tão dura quanto Kevlar e um grande ferrão na ponta da cauda, já nasce dizendo à que veio, explodindo, do modo mais sangrento possível, o peito de sua "mãe" involuntária. Em outras palavras, eles são essencialmente tão filhos da puta que deviam ser amigos!
Por que então fazer um filme em que os dois lutam um contra o outro? Por que toda essa violência contra esses dois amigáveis assassinos por natureza?

Claro, não estou dizendo que já nos vetustos anos 1990, quando eu assisti(na verdade, assisti bem depois já que na citada época eu ainda não tinha idade para sequer engatinhar) Predador II, a caçada continua, eu não tenha ficado entusiasmado com a cena final, onde aparecia o crânio de um Alien, dando a possibilidade de um futuro Crossover daqueles dois adoráveis monstros. Obviamente, naquela passada era eu ainda não podia prever o puro mal que sairia da junção da saga Alien, iniciada pelo emblemático Alien, o Oitavo passageiro, de 1979, com a saga Predador, que se iniciou com o filme O Predador, de 1987. Eu era mais puro, mais ingênuo e, particularmente, eu era muito mais conivente(até porque, se me lembro bem, eu tinha apenas 10 anos quando descobri o possível crossover) com qualquer merda que o cinema tentasse me empurrar garganta a baixo, de forma que pensei, candidamente, o quão legal seria ver na tela grande aquelas duas criaturas bad ass se enfrentando em uma luta até a morte. No entanto, não contava que as duas mais aterrorizantes criaturas que o universo ficcional já criou um dia, seriam vítimas de uma das feras mais temidas do cinema... os executivos do estúdio!
Essa é a bendita cena, na verdade, close up, que instigou todo o crossover entre as franquias.

Sim, você ouviu bem. A fera mais terrível de todo o cinema não é um monstro devorador de homens, sequer um ser sobrenatural que se alimenta dos sonhos ou da dor humana. Não! A fera mais terrível, o monstro mais hediondo, é provavelmente uma pluralidade de executivos( típicos white stupid men) que controlam os grandes estúdios de cinema. Esses homens, as vezes mulheres, são mais catastróficos a qualquer universo ficcional do que a explosão conjunta de todos os dispositivos do Juízo final já criados pelo cinema(um outro bom exemplo da veracidade dessa afirmação é Tropas estrelares 3, que só poderia ser descrito como: O horror! O horror!). Ao invés do Xenomorphis(o Alien), que explode o peito de sua vítima(matando-a no processo, obviamente) em um sinal inegável de misericórdia, esses monstros parasitam filmes, sagas, séries, sugando sua qualidade, e transformando essa em rios de dinheiro!

No entanto, creio que não posso culpar apenas essas vis criaturas pelo fracasso existencial do filme. A ideia de um crossover entre as duas franquias, sempre foi meio ruim se pensarmos bem, embora apenas a atriz Sigourney Weaver, a imortal Ten. Rippley, tenha tido a coragem de admitir isso em público. Nas duas sagas, tanto na predador quanto na Alien, o foco da trama não são os citados monstros, mas os personagens, normalmente humanos, que lhes fazem frente. Um filme focado não na angústia humana pela dor e medo infligidos pelas duas criaturas, mas apenas no combate corpo a corpo das mesmas, está fadado, essencialmente, a não ser nada mais do que uma mera e fútil exposição de efeitos especiais e cenas gore, por mais triste que me pareça reconhecer isso.


E já no quarto parágrafo, imagino que até meu leitor mais paciente esteja se perguntando a razão de eu até agora não haver tentando explicar o enredo do filme. Provavelmente, imaginar-se-á que eu me esqueci de falar do mesmo em meio ao meu entusiamo(já fiz isso antes). No entanto, isso não ocorreu nesse caso, já que tenho de confessar que o filme não possui enredo, ou pelo menos, nenhuma narrativa interessante ou decente o suficiente para gastar muitas palavras. Na verdade, sintetizarei a ideia principal do filme em apenas quatro frases curtas: Primeira, humanos idiotas vão até onde não deviam ir, e mexem com aquilo que não deveriam mexer. Segunda frase, aliens matam humanos e predadores. Terceira, predadores matam humanos e aliens. Quarta, cena pós crédito abre margem para sequência. Pronto, acabo de resumir o filme! Não há nada mais a se falar dele. Na verdade, melhor do que isso, vamos fingir, como pessoas adultas, que ele nunca aconteceu. Assim como sua sequência com o bizarro e inexplicável "predalien"(sério, ainda tento entender de onde saiu essa ideia horrível), e aquele filme, tão biologicamente razoável quanto o longa do "predalien", embora muito mais decepcionante, chamado Prometheus. Na verdade, façamos uma coisa melhor ainda, vamos concordar que somente houveram, e haverão por toda a eternidade, unicamente três filmes do Alien(Alien 4 é merda demais para estar junto aos outros), e apenas dois do Predador(o último filme, Predadores, é tão ruim que quase considerei Alien 4 bom).
Predalien lutando contra predador. O horror! O horror!

Tendo em vista que, portanto, convencionamos que Alien vs Predador nunca existiu na história do cinema, não me cabe aqui tecer mais considerações quanto ao mesmo. Posto a seguir um video, um trailer do filme que concordamos não existir, apenas para satisfação da curiosidade alheia. Entretanto, recomendo sinceramente, até por questões de higiene mental, que não se assista a esse filme. Melhor, se você, meu caro leitor, entrar em uma sala onde esteja se exibindo esse filme, sugiro fortemente que você entre em posição fetal e tampe os ouvidos até o longa terminar, assim você se poupa da terrível experiência de presenciar a morte de uma boa ideia, ou melhor, de uma cândida ilusão.




terça-feira, 7 de outubro de 2014

Dica Cinematográfica: Monster - How do you shoot the devil in the back? What if you miss?

"Há muito tempo atrás havia um monstro sem nome.
O monstro não suportava o fato de não ter um nome.
Então ele decidiu sair em uma jornada para poder encontrar um nome para si.
Mas, como o mundo era muito grande, ele se dividiu em dois e cada parte seguiu para um lado.(...)"

"Vi então sair do mar uma besta com dez chifres e sete cabeças. Sobre os chifres havia dez diademas e sobre as cabeças, nomes blasfematórios.(...) Uma das suas cabeças parecia estar ferida de morte, mas a chaga foi curada, E toda a terra maravilhada seguia a besta. Adoravam o dragão porque tinha dado poder à besta, e adoravam a besta, dizendo: "Quem é semelhante à besta, e quem pode lutar contra ela?""
Apocalipse, 13: 1,3-4

Uma questão que me intriga desde a minha mais tenra infância é a relação entre aquilo que denominamos "mal" e a estética. Tanto no cinema quanto na literatura, e até mesmo no discurso religioso e científico(As teorias criminológicas de Cesare Lombroso são o melhor exemplo), paulatinamente assistimos a uma confusão entre os dois conceitos. Na verdade, creio que mais do que uma confusão, com o passar dos séculos ambos os termos se fundiram(ao menos no imaginário coletivo), construindo uma estética do mal, ou até mais do que isso, forjando um molde de monstruosidade que mesmo hoje formata e limita nossa visão sobre o assunto. Os vilões dos filmes e dos livros, por exemplo, quase sempre se apresentam como pessoas com deformidades físicas evidentes ou de simples inadequação aos moldes da beleza de seu tempo. Apenas para citar alguns, temos nos contos de Conan Doyle o Prof. Moriaty(retratado como tendo um aspecto muito semelhante ao atarrancado esteriótipo de proletário da época), e na obra shakesperiana temos o corcunda e profundamente canalha, Rei Ricardo III. Obviamente, não posso deixar de citar vilões de obras mais contemporâneas, como Voldemort, o vilão de Harry Potter, que tanto no cinema quanto nos livros possuía uma repugnante face reptiliana, e o Presidente Snow de Jogos Vorazes, que exalava por todo o lado um cheiro adocicado, lembrando rosas e corpos em decomposição. Nem preciso ainda falar do cinema, onde os vilões da Disney com suas faces rudes e caricaturais são o exemplo vivo da existência de uma noção estética da vilania, ou dizendo melhor, de uma necessidade visual de contemplação do mal.

Creio que um dos únicos vilões que foge dessa regra é Dorian Gray, protagonista do obrigatório romance de Oscar Wilde. Ele, ao contrário de praticamente todos os demais vilões da literatura, é retratado na maior parte do livro como alguém exteriormente belo, sendo que sua monstruosidade é apenas interna, em outras palavras, ele possui uma deformidade de alma. Confesso, que obras que exploram essa tensão entre beleza e monstruosidade, me agradam muito mais do que as que apenas seguem a citada estética da maldade. Elas são muito mais verossímeis, muito mais próximas à nossa cinzenta realidade do que os caricaturescos personagens de contos de fadas. Porque em nosso mundo reais monstros, criaturas de tão deformada maldade que a mera contemplação já é capaz de petrificar seu observador, não existem, não é? Ou será que certos obscuros contos de fadas podem ser reais?  E são a essas duas questões às quais o anime Monster, produzido entre 2004 e 2005 pela Madhouse, tenta nos responder. Na verdade, creio que, até mais do que isso, a obra se destina a ser um contraponto de toda à tendência da estética da maldade, digo, ela poderia ser descrita inicialmente como um estudo das deformações da alma, ou melhor, uma real estética da maldade, não voltada para o físico de seus personagens, mas para os seus escuros.

Mas creio que, como de costume, adianto-me na análise e esqueço o básico, esqueço-me do enredo. A história se centraliza em redor de Kenzou Temna, um talentoso neurocirurgião japonês, que trabalha em um renomado hospital alemão, em Dusseldorf. Na verdade, talentoso não é exatamente o termo mais correto para nomeá-lo, já que ele era simplesmente o melhor médico em todo o hospital, sendo que seus méritos logo atraíram a atenção do diretor da instituição em que trabalhava, fazendo com que esse o tornasse seu preferido, e até mesmo seu genro. Mesmo o menos arguto, mesmo o mais lerdo, poderia dizer que Temna estava com a vida ganha, ou na melhor das linguagens,  que tinha amarrado definitivamente seu burrinho na sombra. No entanto, ele sofria de uma falha fatal, uma fraqueza de proporções trágicas, era um homem bom e integro e, frente à política do hospital de dar prioridade a certos pacientes mais pelo seu status econômico do que sua condição médica, ele optou pela coisa errada a se fazer, a coisa certa. Um dia, chamado para atender o caso de uma famosa personalidade política, ele se recusou para poder atender o caso de uma criança que havia sido baleada na cabeça, alegando que essa haveria chegado primeiro. Não preciso dizer que toda a boa ação possui uma reação, e ele caiu inevitavelmente em desgraça por isso, sendo relegando, a despeito de seu talento, às sombras. Entretanto, o diabo é mau mas jamais ingrato, e logo o diretor do hospital e várias outras pessoas que contribuíram para sua queda morreram misteriosamente, dando à Temna sua chance de voltar ao estrelato. 
Vejam! O monstro dentro de mim está prestes a explodir!

No entanto, como todo presente diabólico, a graça recebida por Temna teve um auto preço, sendo que esse foi além do fato do bom doutor passar a ser suspeito de todos os assassinatos citados, o mesmo também conhecer seu misterioso benfeitor. Uma boa ação sempre possui uma reação, que nem sempre é boa. O benfeitor de Temna, tratava-se da mesma criança que o mesmo salvou e que lhe levou à sua queda. Essa criança, já agora um adulto, não poderia ser facilmente classificada como má, sequer como cruel, já que não haveria medida para a quantidade de infelicidade e desgraça que sua existência promoveu. Não posso dizer muito sobre o personagem, já que inevitavelmente eu daria spoilers, mas posso dizer que mesmo o Joker criado pelo universo de Nolan, que para mim resume em boa parte o conceito de mal e selvageria, tremeria e se negaria a se encontrar com tal monstro. Sim, desde Keyser Soze(Os Suspeitos- 1995), não se encontra nas telas um chefe do crime organizado que tenha um império tão vasto e ao mesmo tempo tão cruel. E Temna, conhecendo o fato de que contribuiu para a continuidade da existência de tal abominação, passa a persegui-lo por todo o mundo, com o fim de apagar  da existência seu erro de julgamento. No entanto, how do you shoot the devil in the back? What if you miss?



Concluindo, não posso fazer nada além de recomendar esse anime, que de tão bem feito, tão bem produzido e orquestrado, creio que não deveria ser chamado de anime(não que não existam animes bons, mas esse excede qualquer limite razoável). Creio que a ele deveria ser dado um nome diferente, devendo existir em uma categoria acima de qualquer outra obra do gênero para toda a posteridade, ele deveria ser imortalizado, endeusado pelos séculos sem fim, até que o próprio tempo colapsasse sobre si mesmo e apenas o nada e o silêncio reinassem. Mas, c'est la vie, e estou aqui, novamente fazendo tietagem pelos meus gostos perturbados. Mas realmente recomendo esse anime para todos aqueles que queiram realmente presenciar a algo sublime, que queiram passar com algo mais do que tédio por algumas horas de suas ordinárias existências.