"O universo não foi feito à medida do ser humano, mas tampouco lhe é adverso: ele lhe é apenas indiferente".
Não sou um homem religioso(na verdade sou bem o oposto disso), entretanto, olhar para o céu sempre me dá um sentimento de transcendência. Não, não se preocupem, não tentarei lhes empurrar garganta abaixo minhas especulações e teorias sobre o sentido da existência. Não tenho certeza quanto a possibilidade de realmente se saber algo sobre o assunto, e tampouco me acho habilitado suficiente para saber alguma coisa dele melhor que qualquer outra pessoa. Apenas gosto de olhar para o céu, para o bailado das nuvens, para o lento caminhar do sol pela cúpula celeste, e pensar o quão grande e velho é o universo e o quão pequeno e jovem são o conjunto dos sonhos, desejos e interrogações a que chamamos de humanidade. Não me importa saber como tudo surgiu ou se alguém foi(e é) responsável por manter a ordem do relógio denominado universo. Não, sou um bocado pragmático quanto ao assunto. Nasci com um belo céu azul sobre minha cabeça, o mesmo que olhou placidamente pequenos peixes saírem do mar e se tornarem anfíbios e depois gigantes escamosos, e aceito o mesmo como algo eterno e indiferente a mim. Não sou arrogante, sei que o universo funciona sem e despeito de mim e não me entristeço com isso( ao menos não mais), apenas ocasionalmente olho para o céu e contemplo melancolicamente minha pequenez. Ah, o céu...
Mas creio que estou me perdendo em minhas predileções sobre o infinito. Confesso que essa é uma falta já muito peculiar à minha excêntrica persona. Entretanto, o principal motivo de eu haver começado a escrever essas tortas linhas não é dissertar quanto à minha mediocridade existencial, embora ela seja um fato. Não, esse texto se presta a falar sobre um anime, esse inspirado em um mangá homônimo, chamado Mushishi. Desde logo, tenho de dizer que desde Monster(link da crítica aqui) não encontro um enredo que tenha prendido tanto a minha atenção quanto o anime do qual falamos. No entanto, ao contrário de Monster que se constrói sobre uma longa e sólida narrativa onde os fatos se sucedem de forma rápida e abrupta, aqui existe um grande arco descontínuo de histórias independentes que apresentam um desenvolvimento essencialmente moroso. Dizendo de outra forma, enquanto que para compreender Monster se deve assistir a obra como um todo(episódio por episódio), Mushishi apresenta uma estrutura onde a cronologia ou sequer o tempo são claros ou importantes para a narrativa, na verdade, o anime é marcado pela descontinuidade, sendo que para ser compreendido, esse deve ser apreciado aos poucos, aos bocados, como um bom café, um vinho decente ou um cigarro de palha.
Mas deixemos de conversa e passemos logo ao enredo. Esse se passa no Japão, embora o período histórico seja de difícil determinação(pessoalmente, eu chuto que ocorreu não muito antes da Segunda Guerra). O personagem principal, Ginko, é um especialista em Mushi, por isso um Mushi-shi( shi em japonês quer dizer mestre, ou seja, ele é um mestre em Mushi). Mas imagino que o meu leitor potencial, absolutamente enervado e em vias de abandonar o texto, esteja se perguntando: o que diabos é um Mushi? E por que esse idiota não explicou isso até agora?! Bom, quanto a primeira indagação, confesso que mesmo eu ainda não entendi exatamente o que eles são. Os Mushis são apresentados no anime como uma espécie de seres conceituais, eles encarnariam aspectos da vida e da existência, e de alguma forma regulariam o ciclo natural ou mais do que isso, todo o universo. No entanto, eles não existem de fato, digo, eles não são feitos de matéria existindo apenas em uma forma ideal, ou melhor, em um outro plano de existência, embora tenham influência direta no mundo material. Mas eu sei que isso soa confuso, então darei um exemplo...
![]() |
Minuto em que algumas pessoas pensam: What the fuck is this shitt? |
![]() |
This is fucking serious man! What hell going on??? |
![]() |
Fuckin'... what the fuckin' fuck... who did the fuck... fuck this fuckin'...how did two fuckin' fucks... fuck! |
Sim, eu sou um sádico que mostra imagens gore para curiosos incautos, no entanto, por mais bizarra que as imagens anteriores pareçam a ideia por trás delas é incrivelmente boa(e não é gore). Nesse episódio, um dos melhores na minha opinião, uma criança vive há anos enclausurada na mais profunda escuridão. Não, ela não era cega, ao menos não no início. De alguma forma, seus olhos desenvolveram uma progressiva alergia à qualquer tipo de luz, de forma que, depois de algum tempo, ela só pode suportar viver na escuridão total. No entanto, no decorrer do episódio se descobre que a alergia à luz que essa criança possuía era causada por um Mushi, na verdade, por um específico Mushi que se alimentava da escuridão e havia parado nos olhos dela por puro acidente. Diante disso, o protagonista inicia um tratamento na criança, com o fim de que ela se restabeleça e os Mushis sejam expulsos de seus olhos. Nesse ponto, creio que é onde se mostra a maior genialidade do anime, já que os citados Mushis são mostrados não como vilões, tampouco como uma punição divina ou coisa que valha. Eles são apenas um aspecto da natureza que uma vez esbarrando na atividade antrópica podem causar consequências desagradáveis. Questionar a moral ou os motivos de um Mushi é tão razoável quanto fazer o mesmo quanto à uma micose, a uma ameba ou ao vírus do ebola. Sei que chamar isso de genialidade pode parecer de início meio estranho, mas consideremos o quão raro é vermos uma narrativa onde o problema ou o objeto de tensão da trama não são tidos como moralmente maus, ou são frutos da punição de uma transcende. Vivemos tempos maniqueístas e obras como Mushishi são absolutamente válidas para a reflexão de nosso lugar no universo.
Mas creio que me já me alongo demais em um texto que deveria ser essencialmente curto. Apenas gostaria de deixar patente minha recomendação à essa poética e reflexiva obra, que a despeito de sua morosidade ou da estranheza de seu plot, é uma das análises mais adultas e sóbrias que encontro sobre a real relação entre o homem e a ordem natural ou o universo (ou pelo menos em que patamares ela deveria se manter). Citando livremente uma das mentes que mais admiro, o infelizmente póstumo Carl Sagan, "o cosmos é interessante ao invés de perfeito, todas as coisas não fazem parte necessariamente de um grande plano, tampouco tudo pode estar necessariamente sobre nosso controle". No fim das contas, apenas somos mais um tripulante nesse pequeno pedaço de rocha que vaga pelo infinito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário