domingo, 28 de dezembro de 2014

DICA LITERÁRIA: O Rei de Amarelo, de Richard W. Chambers - Carcosa, o lugar do impensável


“Seu olhar caiu sobre o livro amarelo que Lord Henry lhe enviara. O que seria isso, perguntou-se(...) após alguns minutos, estava absorto. Era o livro mais estranho que já havia lido. Parecia que, em vestes refinadas, e ao som do delicado de flautas, os pecados do mundo desfilavam, em silêncio, diante dele. Coisas com que havia sonhado  de modo vago tornavam-se reais para ele. Coisas que jamais imaginaram eram-lhe reveladas.”
O retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde

Segundo um velho ditado, somente tememos aquilo que não conhecemos, ou seja, o medo, em sua forma mais essencial, está sempre vinculado à ignorância, a um desconhecimento fundamental sobre o objeto temido. Tendo isso como premissa, torna-se claro que algo cuja compreensão estivesse além de qualquer possibilidade do entendimento humano, ou seja, algo que fosse essencialmente encoberto a nossos olhos, seria obrigatoriamente objeto por nós de temor, pode-se até dizer que personificaria o próprio medo. Nem preciso dizer, que boa parte das obras de horror e de suspense do cinema e da literatura levam em conta a mencionada relação entre o medo e o desconhecido na construção de suas narrativas e enredos. Alguns bons exemplos do citado, são filmes como Alien, o 8 passageiro, Sillent Hill (aqui tanto o filme de  quanto o jogo) e o seriado Lost, com a sua misteriosa fumaça negra ( que ninguém sabe, até hoje, o que diabos era).



“O mar quebra pela orla, vago,
Os sois gêmeos afundam sob o lago,
(...)"

Mas, embora de uso comum, raramente a relação entre o desconhecido e o horror foi tão bem traçada como na obra de autores como Richard W. Chambers e H.P Lovecraft. Ambos, inclusive, foram fundamentais para o desenvolvimento do citado postulado, já que construíram obras onde a impotência da ação humana frente ao desconhecido era total(o que faz, por consequência, que o horror seja ilimitado), e não meramente relativa, como comumente se mostrava nas obras do gênero e, na maior parte das vezes, mesmo hoje ainda se faz. Mas creio que não estou sendo claro ao meu querido(a) leitor(a) imaginário(a), portanto, desenho! Na maior parte dos filmes e livros de terror, existe um desvelamento progressivo do objeto temido, ou melhor dizendo, a cada vez que é confrontado com o objeto de medo, o protagonista e nós, os expectadores ou leitores, conhecemos o mais, portanto, o tememos menos. Em resumo, existe um anacronismo entre aquilo que se pretende, gerar medo, e aquilo que se faz, diminuir progressivamente o medo criado.

"(...)
As sombras se alongam,
Em Carcosa.
(...)"


O que os dois citados autores realizaram foi o processo contrário, a cada vez que temos mais contato com suas obras, cada vez menos sabemos o que se passa, assim como os protagonistas o que, portanto, faz com que o objeto pareça cada vez mais terrível, cada vez mais passível de causar medo. No entanto, existe uma curiosa diferença entre os dois, enquanto que H.P. Lovecraft desenvolve seu objeto de medo a partir de algo sólido, de um plano de existência avesso ao nosso, Chambers no seu O Rei de Amarelo, constrói o terror sobre o puro pesadelo, sobre uma existência que é puramente imaginária mas que, de alguma forma, vaza seu conteúdo para o mundo real. Em outras palavras, enquanto que o medo é uma relação de consequência no primeiro, o segundo tem o medo não como um elemento de narrativa, mas como um personagem.
"(...)
Estranha é a noite em que as estrelas negras sobem,
E estranhas luas os céus percorrem
Mas mais estranha é a
Perdida Carcosa.
(...)
Mas já vamos ao terceiro parágrafo e apenas mencionei de passagem o livro a que pretendia resenhar. Mais uma vez (e não será a ultima), me perdi em elucubrações e pensamentos vagos (meu triste fado). Mas deixando de lamentações, creio que já é mais do que hora de irmos ao que interessa, ou seja, o livro! Bom, de início, a obra O Rei de Amarelo foi publicada em 1895 e é formado, basicamente, por vários contos que vão desde o terror ao romance desesperançado. A propósito, desesperança é a palavra chave para se entender o livro, que em uma narrativa sã, por vezes também febril e ocasionalmente mesmo insana, sempre nos apresenta o mundo como um lugar decadente, onde os sonhos e as ilusões estão sempre fadados a naufragar frente à dureza do cotidiano. Sim, o sentimento de decadência do fin de siècle impera por todo livro, sendo que o amarelo com o qual se veste o onipresente Rei de Amarelo possui esse exato significado, decadência. 
"(...)
 Que morra inaudita,
Onde o manto em retalhos do Rei se agita;
A canção que entoarão às Híades na
Obscura Carcosa.
(...)"

A escolha da cor para as vestes do rei, a propósito, é bastante curiosa, embora talvez um pouco datada. Amarelos eram os livros franceses(lembrando que todos os contos têm como pano de fundo a França), normalmente de conteúdo polêmico ou liberal demais para a puritana sociedade inglesa, que os encarava como uma fonte de vícios e imoralidades. Não nos esqueçamos que estava em voga  a ideia de que certas ideias, certos pensamentos e palavras eram essencialmente perigosos, e deviam ser evitados. Sendo os espelhos da alma, os olhos eram uma relevante fonte para a corrupção da mesma. Nessa ótica, faz mais sentido que um dos motes centrais do livro, seja a ideia de uma peça fictícia, um livro, que causaria loucura a quem a lesse, e esse mesmo se chamaria O Rei de Amarelo, numa clara menção, aos citados livros franceses.
"Canção de m’alma, minha voz finada;
Morra sem ser entoada, como lágrima jamais derramada
Seca e morta na
Perdida Carcosa”.

“Canção de Cassilda”, em O Rei de Amarelo, ato I, cena 2

Mas imagino que muitos de meus leitores imaginários estejam se perguntando sobre Carcosa, já que provavelmente foi apenas pela menção dessa palavra que começaram a ler esse texto. Sim, apenas pela menção dessa palavra! Não, não estou exagerando. Essa curta e enigmática palavra, assim como a sua relação com O Rei de Amarelo, foram um dos pontos centrais na série True Detective, produzida pela HBO em 2014, sendo que não posso deixar de dizer, que a mesma é absolutamente obrigatória. Sim, todos, todo mundo, EVERYONE, deve ver essa série que, na minha opinião, foi de longe uma das melhores produções de todo o ano!!! Mas, obviamente, antes de assisti-la, leiam o livro, que dá tão poucas indicações quanto ao que seriam Carcosa e a real identidade do Rei de Amarelo quanto a própria série, mas que é fundamental para se entrar no clima menfítico e lovecraftiano que ela desenvolve. Deixo então, o trailer do seriado que mencionei, e a sincera recomendação que todos vocês, minhas pequenas crianças da noite, leiam O Rei de Amarelo. No mais, encerro essas tortas linhas invocando as bençãos do desconhecido sobre todos vocês. Adeus!